segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Agulhas, tatuagens e neurônios

Mente e Cérebro
As aplicações da acupuntura em pontos específicos do corpo parecem estimular o circuito nervoso responsável pela percepção da dor, diminuindo sua intensidade.
por Sidarta Ribeiro

A inserção de agulhas em pontos específicos do corpo para fins terapêuticos é praticada há milênios. Sua origem parece ser a China, mas tatuagens em corpos mumificados encontrados na América do Sul, Sibéria e Europa Central (Moser et al. (1999) Lancet 354:1023) sugerem o uso da acupuntura por culturas pré-históricas não-chinesas. O exemplo mais famoso é Ötzi, homem preservado pelo gelo alpino por 5.200 anos, surpreendentemente marcado por tatuagens que parecem indicar, com precisão de milímetros, alguns pontos da acupuntura chinesa (Dorfer et al. (1999) Discov. Archaeol. 1:16). Entusiastas vêem nesses achados uma confirmação de que os pontos da acupuntura, distribuídos ao longo de um complexo mapa de meridianos, refletem um conhecimento ancestral objetivo sobre onde atuar no corpo para atenuar a dor. Em 1965, Melzack e Wall propuseram que a acupuntura aniquila a dor pela interferência - em "portais" neurais especializados - dos estímulos dolorosos leves com a dor patológica (Science 150: 971).

No entanto, o uso da acupuntura na prática médica ocidental enfrenta fortes resistências desde os tempos de Marco Pólo. Embora não se duvide mais da eficácia das agulhas para induzir sedação, muitos cientistas sustentam que os efeitos da acupuntura decorrem apenas da crença do paciente no potencial terapêutico do tratamento. Para os céticos, a única utilidade da acupuntura é a indução de um efeito placebo genérico, através da liberação de analgésicos endógenos como os opióides (Pomeranz & Chiu (1976) Life Sci. 19:1757). Segundo esta visão, os pontos específicos preconizados pela acupuntura chinesa seriam inúteis como saber médico, não passando de uma velha superstição associada a um bom placebo.

Esta interpretação tem sido questionada recentemente por comparações dos efeitos da aplicação de agulhas em pontos e não-pontos de acupuntura. Experimentos em ratos revelaram que a estimulação de pontos tradicionais causa uma maior expressão de genes induzidos por atividade neural em regiões do cérebro associadas a dor e atenção (Medeiros et al. (2003) Braz. J. Med. Biol. Res. 36:1673; Lao et al. (2004) Brain Res. 1020:18). O imageamento cerebral de humanos por tomografia de emissão de pósitrons (PET) também ilumina a questão. Biella e colaboradores (NeuroImage (2001) 14:60), comparando os efeitos da acupuntura com a aplicação de tratamento placebo, observaram que a acupuntura causa uma forte ativação em áreas cerebrais relacionadas à dor, conforme previsto pela "teoria dos portais" dos anos 60. O grupo de Pariente (NeuroImage (2005) 25: 1161) comparou acupuntura e placebo com o toque não perfurante de agulhas de madeira. O toque cutâneo causou ativação apenas das áreas cerebrais relacionadas ao tato, enquanto o tratamento placebo ativou também as áreas cerebrais relacionadas à recompensa e liberação de opióides. A acupuntura, além de todas estas áreas, ativou ainda o córtex insular, implicado na modulação da dor.

Em resumo, estes resultados sugerem a existência de um efeito específico dos pontos da acupuntura, para além da fé na eficácia das agulhas. Quando praticada em seus pontos tradicionais, a acupuntura parece ser capaz de perturbar o circuito nervoso responsável pela percepção consciente da dor, de forma a diminuir sua intensidade. Mas de que modo os rudes antepassados de Ötzi aprenderam a realizar esta sofisticada reprogramação neural? Provavelmente a terapia envolvia inicialmente apenas o efeito placebo, evoluindo depois, por tentativa e erro, para a aplicação nos pontos que melhor atenuam a dor. Grandes sábios tatuados do passado!

Sidarta Ribeiro é Ph.D. em neurobiologia pela Universidade Rockefeller e pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN). Fez pós-doutorado na Universidade Duke (2000-2005) investigando as bases moleculares e celulares do sono e dos sonhos e o papel de ambos no aprendizado.

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